O artigo Theorizing global health, do célebre professor de antropologia médica João Biehl, problematiza a atual complexidade do campo da saúde global e apresenta uma rica e rara densidade teórica sobre as principais visões críticas deste campo.
Para isto, o autor provoca uma profunda reflexão sobre o recente surto da doença do vírus Ebola na África Ocidental, ao denunciar que os desafios contemporâneos da saúde global não estão limitados apenas às questões biológicas e técnicas, mas envolvem dimensões políticas, econômicas, culturais, éticas e sociais que corroboram com a gênese de um vasto leque de doenças.
Apesar da leitura do texto ser acessível mesmo para aqueles que ainda estão iniciando no campo da saúde global, eu os convido a ler uma breve revisão sobre a biografia do autor e sobre a revista onde tal artigo foi publicado, para que possam entender melhor a magnitude deste trabalho para o mundo acadêmico.
João Biehl é Professor da Universidade Princeton, nos Estados Unidos desde 2001, onde também é co-diretor do programa de saúde global e política de saúde da universidade. Por gostar de contar histórias, o gaúcho João Biehl estudou jornalismo e teologia na Universidade Federal de Porto Alegre e fez doutorado em história da religião na Universidade Berkeley, onde se interessou pela antropologia.
Biehl publicou uma ampla bibliografia e em seu livro Vita, discute a tensão entre o aspecto normativo da saúde global com seus levantamentos estatísticos e tecnicistas sobre vigilância em saúde e a ausência da abordagem crítica e centrada nas pessoas, concentrando-se nas populações afetadas pela AIDS e marginalizadas na Bahia. O conteúdo da obra deu visibilidade para a epidemia oculta da AIDS, denunciando a discriminação de raça e pobreza reproduzida pela política nacional de tratamento. Com esta obra, ganhou inúmeros prêmios, dentre eles o prestigioso Prêmio Margaret Mead, da Associação Antropológica Americana.
Seu artigo Theorizing global health foi publicado em 2016 na Medicine Anthropology Theory (MAT), uma revista de acesso aberto de língua inglesa que publica artigos acadêmicos, ensaios, revisões e relatórios relacionados a antropologia médica. MAT é uma continuação da Medische Antropologie, publicada entre 1989 e 2012 em Amsterdã. Como a sua antecessora, a MAT procura equilibrar o universo das publicações, colocando em primeiro plano trabalhos de estudiosos não americanos e estudos críticos em saúde global.
Importante ressaltar esta obra de Biehl e as características da revista MAT para se ter uma melhor compreensão deste artigo e o que se espera dele.
O referido texto foi dividido pelo autor em três partes: i) uma parte introdutória intitulada “open-source anarchy” (anarquia de código aberto), referindo-se ao campo de saúde global; ii) a segunda parte deste artigo nomeada “Esmiuçando a saúde global” reúne os quatro principais pensamentos críticos sobre saúde global, onde o autor dialoga com uma literatura relevante e recente, citando de maneira clara, diversos pesquisadores deste campo; iii) na última parte e não menos importante, Biehl enfatiza a etnografia como uma ferramenta teórica e metodológica para alcançar uma melhor compreensão da saúde em todos os níveis de análise e defende uma abordagem multicultural e centrada nas pessoas como algo fundamental para se obter uma perspectiva crítica de saúde global.
A introdução do artigo nos relembra que João Biehl e Peter Piot (um dos descobridores do vírus do Ebola) compartilham a mesma visão da epidemia, como não sendo apenas fruto das características biológicas do vírus, mas sim como o resultado de ‟sistema de saúde disfuncionais, indiferença internacional, alta mobilidade da população, costumes locais, capitais densamente povoadas e falta de confiança nas autoridades após anos de conflito armado”. Nos últimos anos, a saúde passou a ter significativa relevância no cenário internacional, integrando inúmeras agendas de política externa e de cooperação. Apesar do avanço do papel da saúde nas relações exteriores, a interdependência impulsionada pela globalização contemporânea ainda reflete as dinâmicas de poder existentes e as iniquidades que impactam sobremaneira a saúde.
Ademais, o autor afirma que a atual conjuntura política mundial, em especial a complexa diplomacia multilateral e a diversidade de atores estatais e não-estatais, favoreceram a interação entre saúde e comércio, encobrindo interesses diversos.
Na segunda parte do artigo, ele reconhece o contexto das relações políticas subjacentes às políticas de governança da saúde. Assim, Biehl enumera quatro linhas de pensamentos críticos a respeito da saúde global contemporânea:
Imperial neocolonial ou pós-colonial - Um primeiro pensamento crítico entende a saúde global como um projeto imperial neocolonial ou pós-colonial. Nesta perspectiva, as relações de poder e os binários de dominação e submissão persistiriam nos contatos pós- coloniais. Em contrapartida, alguns autores aqui mencionados por Biehl reconhecem que existem grupos de países que descentralizariam a confluência do global com o euro-americano, como seria o caso do Brasil no que se refere à política de acesso a medicamentos no contexto do Acordo TRIPS.
Capitalista neoliberal - Uma segunda linha de crítica explora como a saúde global reflete uma ordem mundial capitalista neoliberal. O autor cita, por exemplo, o pensamento de Anne-Emmanuelle Birn, destacando como as preocupações com a saúde global se fundem com os interesses geopolíticos e econômicos, cada vez mais sob o domínio dos atores do setor privado.
Novos regimes de biossegurança, saúde e risco- Uma terceira crítica da saúde global se baseia na obra de Foucault, enfocando os novos regimes de governamentalidade e biossegurança, reconfigurando o discurso e a prática em torno da saúde e do risco. Os estudiosos citados por Biehl, denunciam as intervenções de emergência em nome da segurança, onde apresentam respostas técnicas verticais sem muita preocupação com as condições de vida em curso, ignorando amplamente as perspectivas locais e os determinantes sociais de saúde, muitas vezes violando direitos humanos. Por exemplo, ele cita um belíssimo trecho do artigo de Deisy Ventura: "Finalmente, ao analisar a resposta a todas as emergências apenas através do prisma limitado de segurança condenaria a saúde global a uma sucessão infinita de períodos de "guerra" intercalados com "tréguas" focadas em vigilância em vez de confrontar as causas das epidemias, enraizadas nos determinantes sociais de saúde. Se as respostas imediatas não forem acompanhadas de mudanças estruturais capazes de promover uma redução radical das desigualdades, a de se perguntar: quem estará verdadeiramente seguro no fim de cada "guerra"?"
Humanitarismo - Uma última esfera de crítica aborda a saúde global como uma forma de humanitarismo transnacional. O maior representante desta linha de pensamento seria Didier Fassin. Ele avalia a saúde global como uma forma mais ampla de razão humanitária, que se tornou uma forma dominante de pensamento moral no Ocidente. Fassin diz em seu livro Raison humanitaire: "Por um lado", diz ele, "temos proximidade humana, podemos aliviar e salvar vidas, por outro lado, estamos desfocando a questão do direito e da justiça, e não entendemos o que as pessoas têm que dizer sobre si mesmas, o que equivale a negar sua subjetividade política".
Ao longo da leitura deste artigo bem escrito, organizado e bastante sucinto, fica muito evidente a necessidade de se estabelecer uma visão crítica da saúde global e de sua agenda, quase sempre focada nos interesses normativos e financeiros dos atores mais ricos, nas soluções rápidas como as entregas de vacinas e de dispositivos de saúde e na securitização da saúde durante as emergências, em vez de um olhar e uma escuta atentos às realidades locais. No final, o interlocutor certamente se sentirá encantado por este novo e apaixonante campo de estudo, bem como reconhecerá o imenso valor acadêmico da etnografia como ferramenta mobilizadora do mundo globalizado.
O artigo original está disponível integralmente no site da revista Medicine Anthropology Theory:
Formada em Saúde Global e em Direitos Humanos em Genebra, abraça a causa da diversidade e da equidade de gênero.