A variante ômicron da covid-19 e os desafios éticos da governança global da saúde: quando iremos, de fato, descolonizar a saúde?
A saúde é um tema de política externa e de diplomacia, na medida em que ela se tornou, nas relações internacionais, um veículo de poder e de influência, de segurança e de paz, mas sobretudo de comércio. A saúde passou a ser um vetor de posições geopolíticas e/ou ideológicas dos Estados e de instituições, em busca do ganho em poder político em escala mundial.
As tensões entre a saúde pública, de um lado, e os interesses econômicos e poder político, de outro, compõem os termos de uma equação paradoxal inerente à questão da saúde pública global, segundo Dominique Kerouedan, médica e professora de Saúde Global na renomada Sciences Po de Paris. O mais recente exemplo dos nossos desafios éticos globais é o fechamento de fronteiras por sugestão de Ministros de Saúde do G7, Rússia, Índia, Marrocos, Israel, Austrália e Brasil para as pessoas oriundas da África austral, incluindo África do Sul, o país que identificou o genoma da nova variante ômicron de COVID-19.
Já em 1754, Rousseau em seu discurso sobre “A Origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” revelava a existência da desigualdade natural ou biológica e a desigualdade moral e política.
Segundo o médico, antropólogo e professor em Princeton, Didier Fassin, a ideia de que o coronavírus atinge a todos sem diferença, é uma perigosa ilusão da igualdade dos homens diante da epidemia e, os países não são iguais diante das crises de saúde.
O reconhecimento da nossa humanidade comum talvez seja o mais relevante princípio ético a ser debatido. Será que seremos capazes de reverter as tendências coloniais (desiguais e injustas) na busca por soluções coletivas no âmbito global?
A iniciativa internacional ACT-A, liderada pela Organização Mundial da Saúde é um bom exemplo da incoerência nas questões de saúde global durante a pandemia. Ela, que visava coordenar uma resposta global à Covid-19 que fosse justa e global, dá sinais de que os interesses dos países ricos estavam mais voltados para sua própria segurança sanitária do que por uma genuína manifestação de solidariedade e equidade. Outra iniciativa chamada Covax que pretendia distribuir doses de vacinas de maneira equitativa, conseguiu entregar apenas 15% das doses previstas aos países de baixa renda. Basta observamos os dados publicados pelo “Our World in Data”, que revela apenas 5,9% das pessoas em países de baixa renda receberam pelo menos uma dose até hoje.
Tais dados confirmam que a saúde global permanece dominada por especialistas do Norte Global (principalmente homens) e instituições em países de alta renda e que discursos como do Presidente E. Macron “As únicas respostas eficazes à pandemia serão respostas globais, coordenadas e unidas", estão, na prática, falhando em equidade, respeito à ciência e em reciprocidade. Mesmo que haja ajuda internacional para os países mais vulneráveis, alguns estudos mostram que a alocação da ajuda mundial não obedece apenas a critérios epidemiológicos, populacionais ou de carga de doença, mas aos poderosos vetores que continuam sendo os interesses comerciais, as relações históricas e as vantagens geopolíticas.
Os chefes de Estado deveriam agradecer os cientistas da África do Sul que fizeram rapidamente o sequenciamento genético das amostras de pessoas com sintomas de fadiga em Pretória. A solução eficaz permanece a mesma: manter o uso de máscaras, evitar aglomerações, testagem de quem chega ao país e a adesão à vacinação. A flexibilização de restrições só deveria ocorrer com cerca de 80% da população vacinada.
O fechamento de fronteiras para alguns países africanos é completamente ineficaz e sem sentido porque já existem casos suspeitos e confirmados de pessoas com a nova variante ômicron em muitos lugares do mundo e os testes para avaliar a eficácia dos diferentes imunizantes contra esta cepa serão divulgados em algumas semanas.
A entrada permitida de pessoas não vacinadas (sem passaporte vacinal) oriundas da atual 5° onda europeia durante o verão brasileiro e durante o Carnaval, me parece muito mais perigosa do que a construção de um “muro” em torno da África.
Segundo Didier Fassin, há três formas de disparidade em face da Covid-19: vulnerabilidade, desigualdade, discriminação. E elas estão escancaradas na governança global da saúde na pandemia que já se tornou a nova desculpa para o nacionalismo, isolacionismo, xenofobia, negação da ciência e racismo.
Hoje, neste pandemônio, eu peno a compartilhar do pensamento do Professor Madhukar Pai, que diz: “Espero que todos nós nos tornemos mais bondosos e compassivos, tendo sofrido e sobrevivido juntos”.
Formada em Saúde Global e em Direitos Humanos em Genebra, abraça a causa da diversidade e da equidade de gênero.